sábado, 8 de março de 2014

Ricardo Güiraldes e a indelével sombra de Don Segundo

 
Um grande narrador argentino do século XX, relembrado através deste antigo comentário crítico, elaborado para minha aula "Ricardo Güiraldes e o romance rural" no curso Literatura Argentina Contemporânea (Instituto Cultural Brasil Argentina, anos '80) e publicado numa breve coletânea do mesmo título.
 
 
por
Maria A. Silva
 
Nascida dos ideais nacionalistas que nortearam o Romantismo hispano-americano, a literatura gauchesca argentina encerraria seu fecundo ciclo de vida já nas primeiras décadas do século XX. Historicamente, o gaucho deixara de ter uma função na sociedade: usado como combatente nas lutas de Independência; explorado pelo regime ditatorial que a esta se seguiu, para depois fugir, caçado como bandido, foi finalmente obrigado a diluir-se numa modernidade camuflada por ideais progressistas, que via o atraso da vida rural como um entrave para o desenvolvimento da nação. Contribuiria ainda para esta transformação o fervilhante processo migratório ocorrido na passagem do século, que transferiu o foco de interesse do campo para as grandes cidades, em especial Buenos Aires, a Babel sul-americana.
 
No século XIX, a Argentina havia escutado, com o Martín Fierro (1872) de José Hernández (1834-1886), a voz de protesto contra a injustiça imposta ao gaucho. Neste poema, o eu é indivíduo e evocação de um tempo pretérito harmonioso e feliz. Na mesma época, a nação argentina conheceria com Facundo (1845), de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), uma visão determinista que recusa o enfoque épico, vendo no gaucho o produto da ação da natureza sobre a vontade humana: a noção de numen, a avassaladora força telúrica que moldava, segundo Sarmiento, o comportamento rústico e agressivo do homem do pampa, alijando-o de qualquer possibilidade de contacto proveitoso com a "civilização" citadina.
 
A Argentina teria ainda que passar por algumas gerações de escritores — como Eduardo Gutiérrez , Benito Lynch, Enrique Larreta e Roberto Payró — para poder encontrar na obra de Ricardo Güiraldes (1886-1927) uma das mais genuínas sínteses literárias do universo gauchesco. Güiraldes preocupou-se em resgatar a figura do gaucho como símbolo de argentinidade. Natural da cidade de San Antonio de Areco, familiarizou-se desde cedo com a vida do pampa ao passar a infância e a juventude entre a estância "La Porteña", de seus pais, e a quinta "El Caballito", de familiares. Em 1910, aos vinte e quatro anos, após haver percorrido o Oriente e a Espanha, se estabelece em Paris, onde começa a escrever contos. Porém, decide definitivamente tornar-se escritor somente dois anos mais tarde, ao regressar a Buenos Aires. A partir de 1913, passa a publicar vários contos na revista Caras y Caretas e em 1915, incentivado por sua esposa Adelina del Carril e pelo poeta modernista Leopoldo Lugones, reúne e publica seus trabalhos em duas obras: Cuentos de sangre y de muerte e El cencerro de cristal. No ano seguinte empreende uma viagem com a esposa pela costa do Pacífico, visitando Cuba e Jamaica.

Em 1917 é publicado seu romance Raucho, a princípio intitulado Los impulsos de Ricardito e definido pelo próprio Güiraldes como "una autobiografia de un yo disminuido". Narra a história de um gaucho "aristocrata" dividido entre o prazer da aventura — representada pela viagem a Paris — e a nostalgia da pátria e da vida campestre. A simbologia do nome Raucho parece evidente e define a dualidade psicológica do protagonista: mais do que a simples junção de duas palavras — Ricardo, nome do autor, e gaucho —, é a tentativa de fusão simbólica de dois universos culturais antagônicos e inconciliáveis.

Apesar da má receptividade dispensada a suas obras já publicadas, Güiraldes continua produzindo. Em 1918 aparece seu romance curto Un idilio de estación em El cuento ilustrado, do escritor uruguaio Horacio Quiroga. Voltaria a ser editado seis anos depois, em sua forma definitiva, com o título Rosaura.

De volta à Europa em 1919, começa a redigir Xaimaca, publicado em 1923. Assim como Raucho, o novo romance possuía uma veia simbólica, mantendo a linha autobiográfica: a poética evocação da Jamaica por ele visitada em sua viagem de 1916. Ainda em 1919 inicia a redação de Don Segundo Sombra, sua obra mestra, concluída em março de 1926 e publicada em San Antonio de Areco em julho do mesmo ano. Com ela Güiraldes encerrava a trilogia de romances gauchescos fundada com os dois romances anteriores.

Estava convencido o autor de que sua obra deveria servir para expressar temas argentinos através da abordagem da vida e do linguajar deste tipo social, ainda não explorados literariamente de forma conveniente. Já em 1917, Güiraldes manifestava esta intenção durante uma conversa com Enrique Larreta: escreveria um romance exaltando a vida do homem do pampa, baseando-se em uma figura real, Segundo Ramírez Sombra, o gaucho que conhecera e admirara na infância. A viagem de Güiraldes a Salta em 1921 permitiu-lhe recolher dados imprescindíveis para a criação de Don Segundo Sombra. Ali observou atentamente o falar do campo, que transpôs fielmente à obra com todos os seus fenômenos mais comuns: arcaísmo, voseo, seseo, mudanças vocálicas e consonantais. Ademais, dispensou especial atenção à sintaxe e às sutis conotações do léxico e expressões populares regionais.

Na opinião do crítico Luis Alberto Sánchez, o romance poderia denominar-se "o retorno do gaucho pródigo": a descoberta de belezas insuspeitadas no terruño natal, a reinstauração dos valores da tradição campestre. Eminentemente episódica, a obra conta a vida do órfão Fabio, que aos catorze anos de idade foge da casa das tias para acompanhar o gaucho Don Segundo em suas jornadas de trabalho e sua vida repleta de surpresas a cada passo. Na verdade, a figura deste personagem que divide com Fabio o primeiro plano da história encontra-se esboçada em seus primeiros textos, como, por exemplo, nos contos "Un salvaje" (1911) e "Al rescoldo", de Cuentos de sangre y de muerte, no qual Don Segundo conta uma história junto al fogón.

O romance é narrado em primeira pessoa, por Fabio já adulto, quando este encerra a longa jornada que o havia transformado de guacho — forma depreciativa que significa órfão — em gaucho. Após conhecer suas origens — descobre ser Cáceres o seu sobrenome — e herdar uma estância com a morte do pai, Fabio se adapta à nova vida, sedentária e alterada pelo contato com a grande Buenos Aires, que já então absorvia, sob seu domínio cultural, as regiões circunvizinhas. É na realidade o pampa quase urbanizado dos arredores da capital portenha o centro geográfico que desperta o interesse de Güiraldes. No final da obra, surge Raucho, atual amigo de Fabio, que o introduzirá na nova vida. Como narrador culto — havia aprendido francês e lido várias obras literárias —, Fabio remete-se ao passado, criando uma narrativa que se estrutura em três blocos fundamentais. O primeiro se inicia no capítulo I, quando, em flash-back, relembra sua condição de órfão, lamentando a prisão a que estava condenado: "La calle fue mi paraíso, la casa mi tortura; [...]". Voltando ao momento presente, imagina uma vida de liberdade, longe do povoado em que morava. A fabulosa figura do gaucho Don Segundo aparece no segundo capítulo do romance, como arquétipo dos ideais que Fabio buscava alcançar. Aí delineia-se o caráter virtual de Don Segundo, que se revela mais como uma projeção do pensamento de Fabio do que um personagem real: "Me pareció haber visto un fantasma, una sombra, algo que pasa y es más una idea que un ser; algo que me atraía con la fuerza de un remanso, cuya hondura sorbe la corriente del río".

O segundo bloco narrativo tem início no décimo capítulo, com um novo flash-back. Transcorridos cinco anos desde que havia abandonado seu povoado para seguir Don Segundo, Fabio avalia o aprendizado a que o submetera seu "padrinho":

"Cinco años habían pasado sin que nos separáramos ni un solo día, durante nuestra penosa vida de reseros. Cinco años de ésos que hacen de un chico un gaucho, cuando se ha tenido la suerte de vivirlos al lado de un hombre como el que yo llamaba mi padrino. Él fue quien me guió pacientemente hacia todos los conocimientos de hombre de pampa."

Com o estabelecimento de Fabio na estância herdada, forma-se o terceiro e último bloco, que começa no capítulo XXVII. É o fim da jornada. Cumpriu-se o destino de Fabio e este já não consegue mais reter seu padrinho:

"Él estaba hecho para irse, siempre, y tres años de permanencia en un lugar, lo habían saturado de inmovilidad. Demasiado sentía yo en mí la sorbente sugestión de todo camino, para no compreender que en Don Segundo Sombra huella y vida eran una sola cosa. ¡Y tenerme que quedar!".

A silhueta reduzida e imprecisa de Don Segundo parece afundar-se na terra, que é, afinal, seu elemento de origem:

"Mi vista se ceñía enérgicamente sobre aquel pequeño movimiento en la pampa somnolienta. Ya iba a llegar a lo alto del camino y desaparecer. Se fue reduciendo como si lo cortaran de abajo en repetidos tajos. Sobre el punto negro del chambergo, mis ojos se aferraron con afán de hacer perdurar aquel rezago. Inútil, algo nublaba mi vista, tal vez, el esfuerzo, y una luz llena de pequeñas vibraciones se extendió sobre la llanura. No sé qué extraña sugestión me proponía la presencia ilimitada de un alma. 'Sombra', me repetí."

Don Segundo Sombra é um ritual iniciático, um rito de passagem no qual as viagens de Fabio são simbólicas. As cenas de trabalhos campestres que compõem a quase totalidade da obra são tanto lições práticas como lições morais que, pouco a pouco, vão forjando em Fabio a têmpera do homem forte do pampa: virilidade, destreza, coragem e cautela, ideais encarnados por seu padrinho. Ao assimilá-los e torná-los realidade, o jovem se desgarra progressivamente do apoio de Don Segundo, passando a adquirir vida própria. À medida em que o romance se aproxima de seu desenlace, com a partida de Don Segundo, as atitudes de Fabio deixam entrever este paulatino desligamento: "Antes de que mi padrino tomara cartas en el asunto, me ofrecí para la changa. ¡Qué diablos! Era fuerte y me tenía fe". (Cap. XXII)

Simbólica é também a água, pois nela Fabio reconhece a história de sua própria vida: "Está visto que en mi vida el agua es como un espejo en que desfilan las imágenes del pasado." (Cap. XVII) No início dos dois primeiros blocos narrativos, Fabio medita diante da água que flui: o rio, símbolo da liberdade almejada. Fixando-se na estância, cria raízes e então medita sobre seu passado e presente não mais diante de um rio, e sim diante das quietas águas de uma lagoa.

Don Segundo Sombra é igualmente uma nova leitura do conflito civilização x babárie. Contudo, nesta luta, não é apenas a natureza o adversário que o gaucho deve enfrentar: ele se defrontará consigo próprio e, portanto, vencer significará ultrapassar os obstáculos mas também — e principalmente — superar-se um pouco mais a cada novo instante, fortalecendo sua vontade interior. Don Segundo é essa voz da consciência, lição de coragem e resistência, invisível e constante: "'Hacete duro, muchacho', me había dicho una noche Don Segundo, asentándome un rebencazo por las paletas. A su vez, la vida me rebenqueaba con el mismo consejo." (Cap. XVII) Esse é o percurso de Fabio, revelado, com os mesmos traços impressionistas que compõem a obra, na perseguição do touro — a força instintiva e irracional — que havia ferido seu cavalo:

"El toro hizo su último esfuerzo por enderezarse.
Me caí sobre él. Mi cabeza, como la de un chico, fue a recostarse en su paleta. Y antes de perder totalmente el conocimiento, sentí que los dos quedábamos inmóviles, en un gran silencio de campo y cielo." (Cap. XVIII)

Esfumam-se os limites entre homem e natureza e, na realidade, não há vencedor nem vencido, apenas a essência da vida, a força motriz que, no pampa, rege todos os destinos.

Por empregar uma técnica narrativa incomum. Güiraldes foi mal compreendido e pouco lido em sua época. O fracasso de vendagem de suas obras anteriores e a doença que o vinha consumindo geraram uma crise que mudaria radicalmente seu comportamento intelectual a partir de 1922. Passa a escrever poemas e a colaborar com as revistas de vanguarda Proa — que ajuda a fundar juntamente com Jorge Luis Borges, Brandán Caraffa e Pablo Rojas Paz — e Martín Fierro.

Morreria em Paris em 8 de outubro de 1927. O gaucho que habitava seu ser não voltaria a ver o pampa, mas estava destinado a perdurar eternamente, como essência, na história do povo argentino.


Referencia da imagem: http://www.agendadereflexion.com.ar/2010/07/19/641-don-segundo-sombra-de-ricardo-guiraldes-capitulo-xxi/
  

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